As drogas no cérebro #3: Metilfenidato e anfetaminas
- Nícolas Teixeira Cabral
- 8 de nov. de 2017
- 9 min de leitura
No início do século XX, Sir George Frederic Still descreveu pela primeira vez o que hoje é conhecido como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), um distúrbio marcado pela dificuldade de concentrar e manter atenção, pelo controle disfuncional de impulsos e pela hiperatividade. (1)
Atualmente, as estimativas de prevalência do TDAH apontam para um número na ordem de 7-9% da população (diagnóstico na infância), atingindo pelo menos três vezes mais meninos do que meninas. Também se estima uma prevalência de 4% da população adulta. (2, 3)
Parece haver um componente genético importante no TDAH, já que filhos ou irmãos de pacientes com TDAH tem chance 2-8x maiores de também apresentar a doença, em relação à população geral. Dentre os genes aparentemente envolvidos na etiologia do TDAH estão os genes referentes ao receptor de dopamina D4 e ao transportador de dopamina (DAT), que seria mais atuante em pessoas que apresentam o distúrbio. Assim, a fisiopatologia do TDAH parece muito ligada ao sistema dopaminérgico e os fármacos utilizados em seu tratamento lidam com exatamente com esse sistema. (4)
Há décadas, o tratamento mais utilizado rotineiramente envolve o metilfenidato e anfetaminas. Ambos agem em transportadores de monoaminas, principalmente de dopamina (DA) e noradrenalina (NA), assim como a cocaína. Hoje, entenderemos melhor como essas drogas alteram o funcionamento do cérebro humano.
1. Metilfenidato

Figura 1. O metilfenidato em neerlandês.
O metilfenidato, mais conhecido pelo nome comercial Ritalina, é um estimulante do sistema nervoso central (SNC). Sua ação farmacológica é a mesma da cocaína: bloqueio dos transportadores de dopamina e noradrenalina, o que inibe a recaptação dessas monoaminas pelo neurônio pré-sináptico.
Teoricamente, os sintomas do TDAH são causados pelo excesso ou pela deficiência de estimulação dopaminérgica e noradrenérgica no córtex pré-frontal (PFC). Essa região do cérebro, responsável pela atenção, função executiva, controle de impulsos, memória de trabalho e outros processos cognitivos, tem uma curva de desempenho em "U invertido": tanto o excesso como a falta de DA e NA fazem sua performance subótima.
Em níveis moderados, a NA melhora a função cortical, estimulando receptores noradrenérgicos α2A pós-sinápticos. Em níveis elevados, porém, a NA prejudica a função cognitiva, quando os receptores α1 e β1 também são estimulados. Da mesma forma, o funcionamento ótimo do PFC requer que DA em quantidades moderadas estimule os receptores D1. (5)
Assim como a cocaína e as anfetaminas (todos estimulantes), o metilfenidato produz uma série de sintomas simpaticomiméticos: a frequência cardíaca aumenta, a pressão arterial sobe, a temperatura corporal também. Esses efeitos parecem ser mediados pelo aumento de DA central, o que, entre outros efeitos, causaria a liberação de epinefrina na corrente sanguínea pelas glândulas adrenais. Outras possibilidades seriam a liberação de epinefrina pelas adrenais em resposta ao aumento central de NA ou a presença no plasma de NA extravasada dos terminais nervosos simpáticos. (6)
2. Anfetaminas
As anfetaminas, assim como o metilfenidato, são estimuladoras do SNC. Elas também agem nos transportadores de catecolaminas, o DAT e o NAT. Porém, sua ação é diferente da do metilfenidato. Enquanto este bloqueia a recaptação de monoaminas ligando-se alostericamente aos transportadores, ou seja, em um lugar diferente daquele onde a DA e a NA se ligam, as anfetaminas se ligam a esses transportadores nos mesmos locais que as monoaminas, e são transportadas para dentro do terminal axônico como se fossem DA e NA, diminuindo a recaptação desses compostos por competição.
Ou seja, as anfetaminas são um pseudossubstrato dos transportadores de dopamina e noradrenalina (e às vezes serotonina). Elas são transportadas no lugar dos neurotransmissores. A cocaína e o metilfenidato, por outro lado, não são transportados pelo DAT e pelo NAT, eles apenas os inibem, alostericamente.
Mas o trabalho das anfetaminas não termina aí.
Lembremos que os neurônios dopaminérgicos, noradrenérgicos e serotoninérgicos contêm vesículas em seus terminais axonais, onde esses neurotransmissores são estocados para uso posterior. Essas vesículas contêm em sua membrana transportadores vesiculares de monoaminas (VMATs), que transportam monoaminas do citoplasma do neurônio para dentro das vesículas.
Quando a quantidade de anfetamina no SNC é grande, como acontece com o uso abusivo e recreativo dessa substância, a droga passa a agir também sobre os transportadores vesiculares, inibindo o transporte das monoaminas do citoplasma do terminal axonal para as vesículas. A DA e a NA acumulada no citoplasma acaba invertendo o sentido dos transportadores DAT e NAT, o que leva à liberação desses neurotransmissores na fenda sináptica.

Figura 2. A anfetamina em ação no terminal axonal de um neurônio dopaminérgico. Sua função básica é servir como pseudossubstrato para o DAT (e o NAT), inibindo por competição o transporte das catecolaminas (DA e NA). Em grandes quantidades, a anfetamina passa a ser transportada também pelos transportadores vesiculares VMATs, inibindo por competição a estocagem de catecolaminas em vesículas próprias. Isso leva ao acúmulo de DA e NA no citoplasma axonal, o que leva à reversão dos transportadores DAT e NAT, liberando ainda mais catecolaminas na fenda sináptica.
Portanto, as anfetaminas têm mecanismo de ação distinto dos mecanismos da cocaína e do metilfenidato, apesar de serem todos estimulantes. Em última análise, além de inibirem os transportadores DAT e NAT por competição, e não alostericamente, as anfetaminas promovem a liberação de monoaminas na fenda sináptica (através da inversão dos transportadores).
3. As várias anfetaminas
A anfetamina é derivada da fenetilamina, assim como o metilfenidato, o salbutamol (broncodilatador) e a própria dopamina. A fenetilamina é simplesmente um anel fenil ligado a uma amina por um grupo etil.

Figura 3. A fenetilamina, base química de diversos neurotransmissores e drogas, com diversas funções, em geral estimulantes.
A substituição de um hidrogênio qualquer desse composto por outro radical qualquer cria vários compostos distintos com propriedades estimulantes (a própria fenetilamina é estimulante do SNC). A anfetamina é uma fenetilamina com um grupo metil ligado ao carbono alfa (mais próximo ao grupo amina).

Figura 4. Anfetamina: a fenetilamina, mais um carbono e três hidrogênios substituindo um hidrogênio do carbono na posição alfa.
Por isso, outro nome para anfetamina seria alfa-metilfenetilamina (um grupo metil na posição alfa da fenetilamina).
Acrescentando outro grupo metil à amina da anfetamina, temos uma "filha" famosa dela: a metanfetamina, também uma droga estimulante do SNC utilizada recreativamente.

Figura 5. Metanfetamina: um metil substitui um hidrogênio do grupo amina da anfetamina.
Acrescentando à metanfetamina dois oxigênios ligados por um carbono nas posições 3 e 4 do anel fenil, temos a 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA). Mais conhecida como ecstasy ou, ultimamente, MD, é uma anfetamina de propriedades serotoninérgicas da qual falaremos em outro momento.

Figura 6. MDMA: uma anfetamina com propriedades serotoninérgicas particularmente pronunciadas.
Ou seja, as anfetaminas são uma classe de drogas: existem inúmeros subtipos. Todas têm uma base química, um mecanismo de ação e um efeito em comum: um anel fenil ligado a uma amina por um grupo etil com um grupo metil na posição alfa, a inibição do transporte de catecolaminas (DA e NA) por competição pelos transportadores, e a estimulação do SNC.
Entre si, as anfetaminas podem se diferenciar pela afinidade aos transportadores, pelo tempo de ação, pela capacidade de cruzar a barreira hematoencefálica etc. Também podem possuir propriedades exclusivas. O MDMA, por exemplo, tem afinidade pelos transportadores de SER muito maior do que as anfetaminas em geral, além de afinidade direta pelos receptores serotoninérgicos, o que lhe confere efeitos empatogênicos e alucinógenos que faltam às outras anfetaminas.

Figura 7. A razão do poder de inibição dos transportadores DAT pelo poder de inibição dos transportadores de serotonina (SERT) pelas anfetaminas e outras drogas pode predizer seus efeitos psicotrópicos e sua capacidade de criar dependência. Drogas que inibem muito mais o DAT do que o SERT são mais estimulantes e têm maior potencial de criar dependência, enquanto drogas que inibem mais o SERT do que o DAT tendem a criar mais efeitos empatogênicos e mesmo alucinógenos e ser menos propensas a gerar drogadição. (8)
4. É pena eu não ser burro, não sofria tanto
Já dissemos que a performance do PFC é regulada por uma fina sintonia de catecolaminas. DA (ou NA) de mais e de menos são deletérios. Isso quer dizer que, teoricamente, o uso de anfetaminas ou metilfenidato (ou qualquer psicoestimulante) não melhoraria a capacidade cognitiva de sujeitos normais. E realmente é duvidoso se essas drogas têm essa capacidade. Mesmo assim, é relatado que leves déficits cognitivos causados por sono, fadiga ou alterações de humor podem ser contrabalanceados por psicoestimulantes. Nesse caso, não se trataria de um aumento "positivo" de performance, de um desempenho acima dos níveis normais, mas apenas de um aumento compensatório de performance que foi prejudicada pelo cansaço ou pela fadiga. (9)
A partir dessa ideia de que a função do PFC depende de um tênue equilíbrio de monoaminas, pesquisadores compararam os efeitos de anfetaminas na performance cognitiva de sujeitos com a sua genética para a enzima catecol-O-metiltransferase (COMT).
A enzima COMT já foi relacionada a diversos tipos de enfermidades psiquiátricas, como esquizofrenia, transtorno bipolar, drogadição, TDAH e transtorno obsessivo-compulsivo. (10, 11) Porém, várias dessas relações também já foram contestadas. De toda forma, a relação entre um polimorfismo da enzima COMT e o transtorno obsessivo-compulsivo é um dos mais bem estabelecidos. (12)
A enzima COMT apresenta um polimorfismo em humanos em que uma única guanina é substituída por adenina no códon 158, o que gera uma metionina ao invés de valina. A variante Met da enzima é quatro vezes menos ativa fisiologicamente do que a variante Val, o que aumenta os níveis de DA nas sinapses do PFC (pois a COMT degrada monoaminas sinápticas). (11)
Pessoas com a variante Met do gene teriam, então, melhores performances em tarefas cognitivas, comparados a sujeitos com a variante Val. (5, 13) Em bom português, diríamos que aqueles que têm a variante Met são mais "inteligentes" do que aqueles que possuem a variante Val.
Antes de prosseguir, deve ficar claro que a "inteligência" ou mesmo o termo menos genérico "função cognitiva" refere-se a um traço complexo do fenótipo. A presença de uma variante ou outra de um gene não produzirá uma pessoa definitivamente mais ou menos capaz cognitivamente. Inúmeros genes podem estar envolvidos na cognição, cada um contribuindo com uma pequena parcela para o fenótipo que, além disso, é modificado pelo ambiente. (14)
Os cientistas que pesquisaram os efeitos das anfetaminas na performance de indivíduos homozigóticos para uma das variações (i.e. indivíduos val/val ou met/met) observaram que indivíduos val/val apresentavam melhora cognitiva com a administração de anfetaminas, enquanto indivíduos met/met apresentavam piora. Isso aconteceria porque indivíduos met/met teriam naturalmente níveis mais altos de DA no PFC, e a potencialização da atividade dopaminérgica pelas anfetaminas aumentaria esses níveis além do ótimo. Por outro lado, indivíduos val/val teriam os níveis de DA pré-frontal otimamente aumentados pela anfetamina, o que melhoraria sua performance cognitiva. (13)
Além da performance cognitiva, as variantes genéticas da enzima COMT também podem predizer o "nível de preocupação" de um indivíduo e a chance que ele tem de desenvolver transtornos de ansiedade. As expectativas apreensivas, o medo do futuro e a preocupação têm a ver com a hiperexcitação das alças corticoestriadotalamocorticais (CETC), que descem do PFC para estruturas mesolímbicas e volta ao PFC. Reguladas por diversos neurotransmissores, acredita-se que o excesso de DA no PFC pode superexcitar as alças CETC, o que leva ao pensamento obsessivo, ansioso, preocupado. Como o genótipo met/met está ligado a maiores níveis de DA no PFC, essa variante está associada a maiores níveis de preocupação. (5)
Ou seja, a mesma variante genética que aumenta a performance cognitiva aumenta o sofrimento ansioso.
"É pena eu não ser burro, não sofria tanto", diria Raul.
Referências
1. SWANSON, J. M. et al. Attention-deficit hyperactivity disorder and hyperkinetic disorder. The Lancet, v. 351, n. 9100, p. 429-433, 1998.
2. THOMAS, R. et al. Prevalence of attention-deficit/hyperactivity disorder: a systematic review and meta-analysis. Pediatrics, v. 135, n. 4, p. e994-e1001, 2015.
3. POLANCZYK, G. V. et al. ADHD prevalence estimates across three decades: an updated systematic review and meta-regression analysis. International journal of epidemiology, v. 43, n. 2, p. 434-442, 2014.
4. BIEDERMAN, J. Attention-deficit/hyperactivity disorder: a selective overview. Biological psychiatry, v. 57, n. 11, p. 1215-1220, 2005.
5. STAHL, S. M. Psicofarmacologia – bases neurocientíficas e aplicações práticas. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2013.
6. VOLKOW, N. D. et al. Cardiovascular effects of methylphenidate in humans are associated with increases of dopamine in brain and of epinephrine in plasma. Psychopharmacology, v. 166, n. 3, p. 264-270, 2003.
7. HYSEK, C. M. et al. Pharmacokinetic and pharmacodynamic effects of methylphenidate and MDMA administered alone or in combination. International journal of neuropsychopharmacology, v. 17, n. 3, p. 371-381, 2014.
8. LIECHTI, M. E. Novel psychoactive substances (designer drugs): overview and pharmacology of modulators of monoamine signalling. Swiss medical weekly, v. 145, p. w14043, 2015.
9. MCCREARY, A. C.; MÜLLER, C. P.; FILIP, M. Psychostimulants: Basic and Clinical Pharmacology. International review of neurobiology, v. 120, p. 41-83, 2015.
10. GLATT, Stephen J.; FARAONE, Stephen V.; TSUANG, Ming T. Association between a functional catechol O-methyltransferase gene polymorphism and schizophrenia: meta-analysis of case-control and family-based studies. American Journal of Psychiatry, 2003.
11. LOHOFF, Falk W. et al. Association between the catechol-O-methyltransferase (COMT) Val158Met polymorphism and cocaine dependence. Neuropsychopharmacology, v. 33, n. 13, p. 3078, 2008.
12. LACHMAN, Herbert M. Perspective: Does COMT val158met Affect Behavioral Phenotypes: Yes, No, Maybe?. Neuropsychopharmacology, v. 33, n. 13, p. 3027-3029, 2008.
13. MATTAY, Venkata S. et al. Catechol O-methyltransferase val158-met genotype and individual variation in the brain response to amphetamine. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 100, n. 10, p. 6186-6191, 2003.
14. WATSON, J. D.; BERRY, A. DNA: o segredo da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Figuras
1. In Nederland op dit moment verkrijgbare tabletten Methylfenidaat (10 mg) (modificado).
2. Stahl, 2013.
3. Estrutura em 2D da fenetilamina.
4. Estrutura em 2D da anfetamina.
5. Estrutura em 2D da metanfetamina.
6. Estrutura em 2D do 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA).
7. Liechti, 2015.
Abreviaturas
CETC. [Alças] corticoestriadotalamocorticais.
COMT. Catecol-O-metiltransferase.
D1, D2 etc. Receptor dopaminérgico D1, D2 etc.
DA. Dopamina.
DAT. Transportador de dopamina.
MDMA. 3,4-metilenodioximetanfetamina (ecstasy)
NA. Noradrenalina (norepinefrina).
PFC. Córtex pré-frontal.
SERT. Transportador de serotonina.
SNC. Sistema nervoso central.
TDAH. Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade.
VMAT. Transportador vesicular de monoaminas.