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Os problemas do livre arbítrio além do determinismo

Semana passada, falamos um pouco sobre como o determinismo "ameaça" o livre arbítrio. Afinal, o determinismo supõe que só existe um futuro possível, dado certo presente (ou que só existe um presente possível, dado certo passado), e o livre arbítrio supõe que um agente racional tem a capacidade de escolher entre dois ou mais cursos de ação possíveis. Como seria possível escolher entre dois cursos de ação (livre arbítrio), se só existe um futuro (determinismo)?

(O futuro aqui deve ser entendido não apenas como um ponto fixo no futuro, mas como toda a linha do tempo posterior ao presente. Não se trata de escolher entre dois caminhos que chegam ao mesmo destino, o que conciliaria o livre arbítrio com um determinismo teleológico típico do cristianismo. O determinismo causal do qual trato aqui e em outros textos admite que o estado do mundo em determinado tempo t define todos os estados subsequentes a ele [e também os anteriores, mas isso é assunto para outra hora].)

O determinismo, claro, está longe de ser universalmente aceito. A doutrina da qual falamos aqui, que é um determinismo físico, dependente do determinismo das leis naturais, é posto em dúvida, por exemplo, pela mecânica quântica. Ainda que isso seja um tema controverso entre físicos e entre filósofos, a mecânica quântica (ou pelo menos algumas de suas teorias) expressa leis naturais em termos de resultados prováveis, e não de resultados certos, como a mecânica clássica. Isso teoricamente traz a possibilidade de um mundo que, mesmo governado pelas leis naturais, permite futuros alternativos. Ainda assim, o indeterminismo da mecânica quântica é questionável. Trata-se realmente de indeterminismo, ou de um limite às nossas capacidades de mensurar o mundo subatômico?

Porém, supondo que o determinismo não seja real, como fica o livre arbítrio? A possibilidade de futuros alternativos garante que sejamos agentes capazes de escolher entre esses futuros possíveis? A incerteza quântica garante que sejamos os verdadeiros agentes de nossas vidas?

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A complexidade e a natureza particular da consciência humana causam tanta perplexidade que não nos surpreende que busquemos uma causa metafísica para ela. Afinal, como simples reações químicas poderiam criar a sensação de ser alguém que tem propósito, que ama e que questiona seu próprio destino no universo?

A mesma perplexidade também por séculos acometeu os humanos que buscavam uma força particular que explicasse a vida. Haveria de haver algo que explicasse a diferença gritante entre uma rocha e um sapo. Uma espécie de força vital. Talvez a alma ou o espírito.

A descoberta das moléculas replicadoras, da estrutura do DNA, do código genético e toda a produção científica relacionada trouxeram respostas científicas à questão da vida. Trata-se de reações químicas, reações químicas complexas, mas ainda meras reações químicas, sujeitas às mesmas leis que todo o resto.

Da mesma forma, nossa consciência, nossos sentimentos mais profundos e nossos pensamentos mais elaborados são produtos de reações químicas naturais do nosso cérebro. Não é necessário que haja alguma entidade especial para que essas maravilhas da natureza sejam produzidas. A intricada rede de neurônios e glia dentro da nossa cabeça é suficiente para criar a admirável consciência humana.

Essa visão de que nossa mente depende simplesmente da química cerebral parece (e de alguma maneira é) biologicista. Mas dizer que a consciência é produto de reações químicas não quer dizer que fatores sociais ou psicológicos não a influenciem. Traumas psicológicos, psicoterapia, educação formal etc. alteram, sim, nossa psiquê, através de mudanças em última instância biológicas. Apesar de nossa dificuldade em estudar cientificamente o cérebro, não há razão para crer que tudo isso não possa um dia ser explicado em termos neurofisiológicos.

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Dada a complexidade da consciência humana, é normal pensar que nossa cabeça guarda nossa alma ou qualquer outra entidade metafísica. A verdade, porém, é que o cérebro é um órgão que simplesmente recebe, processa e envia sinais elétricos.

A função básica de um sistema nervoso é essa: receber sinais do mundo externo (através dos sentidos), processar esses dados (entendê-los e chegar às melhores alternativas para reagir a eles), e enviar respostas (pelos órgãos motores).

As "respostas" que o cérebro produz não são simplesmente inventadas por ele. Elas dependem basicamente de três coisas: 1. da informação que chega; 2. do design do cérebro; e 3. das leis naturais.

A "informação que chega" são os dados captados pelos órgãos sensoriais: tudo que vemos, ouvimos, degustamos, sentimos na pele e cheiramos.

O "design do cérebro" compreende sua anatomia e sua bioquímica: a quantidade e a localização das sinapses, a quantidade de receptores e neurotransmissores de cada via, as conexões entre diferentes partes do órgão etc. Boa parte desse "design" é fruto do genótipo de cada indivíduo, mas ele também é moldado pela "informação que chega" (p. ex., quando ouvimos e vemos algo, aprendemos, e o aprendizado compreende mudanças estruturais e bioquímicas no cérebro) e mesmo por substâncias que podemos adicionar ao nosso sistema nervoso central (drogas psicotrópicas). O "design" do cérebro determina quais respostas serão geradas para as informações sensoriais que chegam a ele.

Por fim, as "leis naturais" são as regras segundo as quais acontecem as reações químicas e os fenômenos físicos do cérebro.

Ou seja, tudo que o cérebro "produz", todos os sentimentos, pensamentos e comportamentos são produto do processamento da informação sensorial que chega até ele. Esse processamento depende do "design" do cérebro, definido em conjunto pela genética e por fatores ambientais. Tudo isso segue leis naturais eternais.

Não há espaço para que o agente racional adicione nada nessa equação. Nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos são definidos por eventos fora de nosso controle.

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A não veracidade do determinismo de forma alguma automaticamente valida o livre arbítrio. Principalmente se pensarmos em termos quânticos. Mesmo que as leis do universo permitam futuros alternativos no subuniverso quântico, o que nos faria supor que a vontade humana pode controlar essas porções minúsculas de matéria e energia?

Mesmo se as partículas subatômicas tiverem algum grau de "liberdade", ainda assim é difícil argumentar que nós, seres humanos, tenhamos algum controle sobre essas partículas, de forma que tenhamos algum controle sobre seu comportamento em nosso cérebro, de forma que poderíamos dizer que de alguma maneira temos o mínimo de influência sobre nossos cérebros.

Schopenhauer disse que podemos fazer o que queremos, mas que não podemos querer o que queremos. De fato, temos a ilusão de escolha: ir à faculdade ou matar aula, sair com os amigos ou dormir cedo etc. Se eu quiser sair, eu saio, se eu quiser dormir, eu durmo. Nós realmente fazemos o que queremos. Porém, nós não controlamos o que queremos.

Cabeça feita, pago o que eu consumo. Se eu quiser...

Também Nietzsche disse que a entidade "eu" não pensa. Os pensamentos vêm à mente e se vão; não podemos escolher o que pensar. O que eu pensarei no próximo segundo é um mistério para mim, e eu não saberia dizer nem como esta frase terminaria dois segundos atrás.

É o fato de que um pensamento ocorre apenas quando quer e não quando "eu" quero, de modo que é falsear os fatos dizer que o sujeito "eu" é determinante na conjugação do verbo "pensar". – Nietzsche em Além do Bem e do Mal.

Nada, nada é meu, nem o pensamento.

Somos simplesmente veículos para que os pensamentos se gerem segundo as leis naturais.

O livre arbítrio não existe, nem em um mundo não determinista.

Figuras por Silvio Tanaka e André Luiz D. Takahashi.


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