top of page

Linguagem comparada #4: O esperanto

O que idiomas tão distintos como o português, o latim vulgar, o inglês, o sânscrito, o árabe e o russo têm em comum, que o esperanto não tem? Todas essas línguas, menos o esperanto, são (ou eram) línguas naturais, que surgiram entre os membros de determinada região sem deliberação prévia, moldando-se espontaneamente segundo uma espécie de seleção natural (como diz a teoria do meme de Richard Dawkins).

No final do século XIX, o médico judeu Ludwik Zamenhof publicou o primeiro manual desse idioma, na pretensão de que se tornasse a língua franca do mundo (como hoje é o inglês). Assim, o esperanto é uma língua fácil, simples e intuitiva, pois ele foi pensado e desenhado especialmente para ser um idioma de fácil aprendizagem.

A ideia é muito legal, apesar de a prática ser extremamente complicada. Parece que nós simplesmente estamos mais inclinados a nos interessar por línguas étnicas, mesmo as menos populares. Hoje, pessoas em diversos países do mundo conhecem e falam esperanto, mas ele ainda está longe de ser uma língua franca internacional, como Zamenhof sonhou.

Zamenhof, o médico judeu polonês que inventou o esperanto, em 1904.

Houve experiências desde o início do século passado com o ensino de esperanto a crianças, não apenas com o objetivo de versá-las na língua, mas como preparação para o aprendizado de outras línguas. Teoricamente, a simplicidade do esperanto faria com que as crianças visualizassem mais facilmente conceitos gramaticais, bastando depois transferi-los e adaptá-los a outros idiomas que lhes fossem ensinados.

Isso me lembra como aprender línguas, ao contrário do que me foi dito quando pequeno, torna-se cada vez mais fácil à medida que o tempo passa. Depois de proficiente em um idioma, aprender outros é menos trabalhoso, pois já conhecemos mecanismos linguísticos diferentes daqueles de nossa língua-mãe, o que nos ajuda a compreender ainda mais os nuances gramaticais de outros idiomas.

Isso também me lembra um pensamento tolo que eu já tive, de achar que nunca seria possível aprender bem uma língua estrangeira, muito menos duas, porque era coisa demais para caber no cérebro. Mas nosso cérebro não é um disco rígido com capacidade máxima de alguns terabytes. Nosso cérebro funciona como uma rede de informações que se cruzam

Quanto mais línguas sabemos, mais fácil é aprender outras línguas. E também mais fácil é compreender o próprio português. E, mesmo se não servir para nada, pelo menos é divertido.

Como disse o médico e escritor Guimarães Rosa,

“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”

Com vocês, o esperanto.

O artigo

Para começar, existe um único artigo em esperanto, o artigo definido la. O italiano, em comparação, tem os artigos definidos lo, il, la, gli, i, le, além dos indefinidos uno, un e una, mais as contrações l' e un'. Ou seja, enquanto para aprender italiano deve-se aprender a utilizar dez artigos nas situações certas, em esperanto basta saber utilizar ou não o único la (sem contar as contrações).

Abaixo, a mesma frase em esperanto, italiano e português. Enquanto em esperanto utilizamos apenas um artigo definido três vezes, em italiano e português utilizamos três artigos definidos diferentes.

La knabo kaj la knabino rigardas la birdojn.

Il ragazzo e la ragazza osservano gli uccelli.

O menino e a menina observam os pássaros.

Mas isso não é peculiaridade do esperanto. No inglês também temos apenas um artigo definido:

The boy and the girl watch the birds.

Substantivos e adjetivos no singular e plural

Todos os substantivos singulares do esperanto terminam com a letra -o, independentemente do gênero. No plural, acrescenta-se um -j, ficando -oj. Assim, temos:

La viro kaj la virino (=O homem e a mulher).

La viroj kaj la virinoj (=Os homens e as mulheres).

O -j em esperanto é pronunciado como nossa semivogal i, e não com o som típico do j no português. É como se falássemos "víroi" e "virínoi", com o aberto.

Os adjetivos, por outro lado, são todos terminados em -a, no singular, ou -aj, no plural. Assim, é fácil entender o papel de uma palavra em uma frase apenas de ver suas últimas letras. Isso é muito diferente de quase todas as línguas naturais. Em português, por exemplo, substantivos e adjetivos podem ambos terminar em -o, -a, -z, -el, -ão etc.

La bela telero (=O prato bonito).

La nova domo estas bela (=A casa nova é bonita).

Os adjetivos concordam em número com os respectivos substantivos:

La bela Neĝblankulino kaj la sep malgrandaj enanoj (=A bela Branca de Neve e os pequenos sete anões).

O caso acusativo

Assim como no latim, o esperanto modifica o final dos substantivos para, grosso modo, diferenciar aqueles que têm função de sujeito daqueles que têm função de objeto. Substantivos que servem como sujeito terminam em -o ou -oj (caso nominativo), enquanto substantivos objetos terminam em -on ou -ojn (caso acusativo):

La virinoj vidas fiŝon (=As mulheres veem um peixe).

Fiŝo vidas la virinojn (=Um peixe vê as mulheres).

Teoricamente, isso permite que a ordem do sujeito, do objeto e do verbo na frase seja livre, apesar da ordem sujeito-verbo-objeto ser comum no esperanto, assim como no português:

Mi amas vin (=Eu amo você).

Min amas vi (=Você me ama).

Os adjetivos também concordam em caso com os substantivos que modificam.

La belaj knabinoj ne vidas la brilan stelon (=As belas garotas não veem a estrela brilhante).

No inglês e no português, depois de preposições, frequentemente utilizamos pronomes objetos: o correto é "para mim" e "with me", não "para eu" e "with I". É como se no esperanto escrevêssemos "kun min", com o pronome no caso acusativo (objeto). Mas isto é incorreto. No esperanto, depois de preposições, utiliza-se o caso nominativo:

Li diris al mi (=Ele disse a mim).

Os verbos

Como talvez já se tenha percebido, os verbos no esperanto não se flexionam segundo o número e a pessoa.

Mi marŝas, vi marŝas, ŝi marŝas, ni marŝas (=Eu ando, você anda, ela anda, nós andamos).

A letra ŝ é pronunciada como o nosso ch. É como se disséssemos "marchas".

Todos os verbos no presente do indicativo terminam em -as. Os verbos no passado do indicativo terminam em -is, e no futuro do indicativo terminam em -os. No infinitivo, terminam em -i.

Ni manĝias oranĝojn (=Nós comemos laranjas).

Li dormis multe (=Ele dormiu muito).

Ili studos morgaŭ (=Eles estudarão amanhã).

La kuri de la vivo eniras ĉion (=O correr da vida embrulha tudo). (Tentei traduzir a frase de Guimarães Rosa. Literalmente seria "o correr da vida entra em tudo". Não sei se haveria uma tradução melhor. Provavelmente sim).

O ĝ representa um som fricativo, como nosso d em dia, ou como a pronúncia popular de Jah. Manĝias seria algo como "mandjas".

Fonética

Uma grande facilidade do esperanto é que, se você conhece o alfabeto e os sons de cada letra, você sabe dizer tudo que lê. Isso não é bem verdade para o inglês, nem para o português, nem para a maioria das línguas que eu conheço.

Vamos começar pela última flor do Lácio. As letras c, d e g mudam de som dependendo da vogal que as segue (cerca, dadinho, galera e geração). As letras s e r mudam de som se vêm no início da palavra. O h é um absurdo sui generis. Algumas palavras são acentuadas se são paroxítonas, outras são acentuadas caso sejam oxítonas, dependendo de suas últimas letras. Existem regras, sim, mas são complexas e têm exceções demais.

O inglês é pior ainda. Diga a um nativo médio uma palavra difícil que ele não conhece e ele terá muita dificuldade em escrevê-la. O YouTube tem vários vídeos sobre isso. A letra a somente já tem vários diferentes sons: apple (é), case (ei), aristocratic (a e é) e warm (ó).

No esperanto isso não existe. Cada letra tem um som e cada som tem sua letra. Todas as palavras são paroxítonas. Até palavras estrangeiras consagradas são modificadas de acordo com a ortografia do esperanto.

Por tudo isso, é provavelmente a língua mais fácil que eu conheço.

Figura por autor desconhecido.


bottom of page