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Profissão: chauffeur

Cronicazinha de meu amigo José Renato Resende, autor do blog Meio-Termo.

Estava na calçada da minha casa, a atenção dividida entre o celular e a rua. O carro branco, um Volkswagen Voyage, parou perto. A motorista (está certo o feminino?) e eu nos olhamos nos olhos e balançamos levemente a cabeça, em sinal de reconhecimento.

— José? Ela perguntou.

— Sim.

— Pode entrar, aceita uma bala, ar condicionado ou vidro aberto, tem algum caminho de sua preferência?

Foi cumprido o ritual sagrado das viagens de Uber. Me sentei no banco da frente, não que estivesse com vontade de conversar, mas acho indelicado sentar no banco de trás, como se eu fosse alguém muito importante, um ministro.

Um amigo que o pai dele é (motorista de) Uber me contou que lhes ensinam “a linguagem do passageiro”. Sentar na frente é estar aberto à conversa, sentar atrás do banco do passageiro é estar indiferente e atrás do banco do motorista significa, mais ou menos, “é melhor não falar comigo”.

Eu sentei na frente, como sempre. No começo da viagem, invento alguma desculpa para mexer no celular. Fico alheio, mas não dou conta. A gente mal anda um quarteirão e eu começo (sim, eu reconheço mea culpa): e esse calor?

Porque comentar sobre o tempo é a palavra mágica que abre portas — e diálogos. Daí em diante, já estávamos falando das eleições de outubro e da Copa do Mundo. Ela me contou como começou a trabalhar de motorista. Não gostava do antigo emprego, que abandonou e foi trabalhar de Uber no carro do namorado. Depois de poucos meses, terminou o namoro.

— Fiquei sem emprego, sem carro e companheiro. Agora financiei esse aqui, para não ficar sem nada.

E encheu os olhos de lágrima.

Cada viagem é uma viagem. Os motoristas têm todo tipo de histórias. E eles gostam de contá-las.

Outro dia peguei um Uber que jurava que me conhecia. Fui entrando e ele disparou a conversar, como se fôssemos velhos amigos.

Me contou. Você acredita que, mais cedo, busquei dois casais. Pediram para levá-los no motel. Fui. No portão, não tinha vaga. E aí, o que a gente faz. Me pediram para achar outro, que fosse barato. Levei, tive que entrar na garagem da suíte, deixei os quatro lá dentro. Depois tenho que voltar para buscar. É cada uma que me aparece… E morreu de rir.

Tenho um tio-avô que era motorista de caminhão, numa época que nem sonhava com Uber, ou com qualquer outro aplicativo. Ele viajava num Mercedes 1213, azul royal, transportando carvão e calcário, pelo Brasil inteiro.

Além de viajar, tinha outro hobby: dar carona para pessoas “excêntricas”. Sobretudo hippies, afinal, estamos em plena década de 70 e a galera não hesitava em pôr a vida numa mochila e sair por aí.

Meu tio viu um casal hippie na beira da estrada e encostou o caminhão:

— Aonde vocês vão?

— Pegar a BR 262.

— Podem entrar, é meu caminho. De onde vocês são? O tio perguntou.

— Do Planeta Terra. O rapaz respondeu um pouco ranzinza.

Amoleceu o coração do rapaz. Ele começou a enrolar “fumo” num papel. O tio perguntou:

— É Souza Cruz?

— Não, irmão, esse é natural. Quer provar?

Como meu tio conta essa história na frente da família, sempre diz que agradeceu. Depois se vira para mim e pisca com o olho direito.

Um dia eu também quis beber dessas águas (me refiro à vida de motorista e não ao baseado) e me ofereci para viajar de caminhão com o amigo de uma amiga. Transportava leite para um laticínio. Oito horas viajando de madrugada, quase atravessava o Rio Grande do Sul para deixar o tanque na fronteira com o Uruguai. A gente foi conversando e ouvindo rock. Queen, Beatles e ABBA, que nem sei se é rock. O cara tinha bom gosto.

No caminho, um veado no meio da pista. Dourado, lindo. Parou para olhar a luz do caminhão, parecia cena de filme.

Foi me contando causos. E eu, que adoro ouvir, fico calado, só abro a boca para fazer perguntas. Por indução, quase posso dizer que todo motorista é assim, um livro de histórias. Não sei se são todas ou completamente reais, o que não tem muita importância, quando a história é boa.

Me dá uma grande vontade, às vezes, de me dissolver em outros mundos. Nesses. Não sei se no de chauffeur, não dirijo muito bem. Mas de ouvinte. Sair por aí, conversando com as pessoas, principalmente as que ficam no seu canto, e a quem não dão tanta atenção. Ouvir histórias e contá-las depois.

Se motoristas são assim, imagina outras profissões. Guarda-noturno, dono de bar. Além de escritores, claro.

Cada um de nós é um universo, como dizia Raulzito. E universos que se multiplicam quando se encontram.

Figura de Happi Raphael.


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