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Medicina não é matemática

Na faculdade de medicina, desde o começo, somos motivados a raciocinar sobre como os processos fisiológicos se sucedem, a criar relações de causa e efeito que expliquem por que certas coisas acontecem como acontecem. Um exemplo bobo: o aumento da pressão arterial estimula barorreceptores nas artérias, o que leva à secreção de compostos vasodilatores que aumentam o calibre dos vasos e fazem a pressão se normalizar. Neste caso, não basta saber que a hipertensão leva à vasodilatação, é necessário saber as "razões" pelas quais isso acontece, como uma coisa leva a outra.

O problema é que medicina (ou biologia, fisiologia) não é matemática: nossos problemas não são solucionáveis simplesmente pelo uso da razão. Existem coisas que acontecem em nossos corpos que são contraintuitivas e o raciocínio puro não chega às conclusões que vemos na realidade.

Um bom exemplo é o uso de betabloqueadores na insuficiência cardíaca. Os betabloqueadores "bloqueiam" receptores adrenérgicos do tipo beta. Esses receptores adrenérgicos induzem respostas simpáticas quando a epinefrina se liga a eles: aumento da frequência cardíaca, aumento da força de contração do miocárdio, aumento da glicogenólise etc. O bloqueio desses receptores pelos betabloqueadores, ao contrário, diminui o efeito da epinefrina, consequentemente diminuindo a frequência cardíaca e a força de contração do miocárdio etc.

O coração de pacientes com insuficiência cardíaca, em poucas palavras, tem dificuldade de funcionar adequadamente, ou seja, de receber e bombear sangue com eficiência. Segundo a lógica, o que deveríamos fazer? Aumentar a força de contração e a velocidade com que o coração bate, ou seja, potencializar os efeitos adrenérgicos no coração. Assim ele bombearia mais sangue, compensando sua insuficiência.

Porém, há relativamente poucos anos, começamos a perceber que pacientes com certos tipos de insuficiência cardíaca e níveis altos de adrenalina morriam mais do que os pacientes com baixos níveis de adrenalina. Começamos a administrar betabloqueadores para esses pacientes e diminuímos sua mortalidade.

Isso é completamente contraintuitivo. O coração do insuficiente cardíaco está "lento", "fraco"; o raciocínio esperado é: "vamos dar uma droga que o deixe mais rápido e vigoroso". Contudo, dando uma droga que o deixa ainda mais fraco e lento, o betabloqueador, esses pacientes morrem menos.

Existe uma possível razão fisiológica para isso. A quantidade de sangue que um coração bombeia em um minuto (débito cardíaco) é o produto da quantidade de sangue que o coração bombeia em cada batida (volume sistólico) pela quantidade de vezes que o coração bate em um minuto (frequência cardíaca). O betabloqueador faz o coração ficar mais "lento", diminuindo a frequência cardíaca, o que diminuiria o débito cardíaco. Porém, ao mesmo tempo, o coração mais "lento" dá mais tempo para que o ventrículo se encha de sangue, aumentando o volume sistólico, o que aumentaria o débito cardíaco. Aí sim, o coração seria mais eficiente: bombeando mais sangue com menos esforço.

Mesmo assim, não teria como saber isso simplesmente pelo raciocínio. Precisamos de experiência: ver na prática as coisas acontecerem. Na teoria, podemos achar soluções racionais para vários problemas na medicina. Mas na prática eles não dão certo, por um milhão de motivos.

Tenho outro professor que se refere a isso com a dicotomia plausibilidade biológica v. eficácia clínica. Alguns tratamentos parecem bons: analisando suas propriedades e pensando em como elas vão interagir com o corpo humano, temos motivos para supor que eles tratarão com sucesso certa doença. É biologicamente plausível. Mas isso é só meio caminho andado.

Por isso, quando um remédio novo é desenvolvido, não basta que ele pareça um bom remédio, que ele tenha a estrutura química aparentemente perfeita, que ele mostre ótimos resultados em tubos de ensaio, nem mesmo que ele mostre ótimos resultados em animais de laboratórios. Para que um remédio novo se torne utilizável na prática clínica, ele deve demonstrar eficácia e segurança em estudos clínicos, sendo testado em gente de verdade, muita gente, com controle placebo, duplo-cego, randomização etc.

Algumas vezes durante a faculdade, um professor mais truculento se impacientava e mandava que raciocinássemos, para assim chegarmos a conclusões sobre processos fisiológicos que nunca havíamos estudado antes. Às vezes dava certo, mas muitas vezes não dava. Claro que não dava, pois medicina não depende apenas de raciocínio puro. Medicina não é matemática.

Coisas bizarras acontecem em nosso corpo, e nós só ficamos sabendo delas quando as vemos acontecer (ou quando, através dos livros, pessoas que já viram nos contam).

Figura por Patrick J. Lynch, Yale University School of Medicine.


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