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Por que as pessoas fumam?

Quais são as razões de algumas pessoas experimentarem o cigarro, mesmo sabendo que depois vão ficar viciadas?

Essa foi a pergunta recente de um usuário do Quora em Português. Minha resposta está aqui. Decidi falar um pouco sobre isso também aqui no blog.

Primeiramente: a pergunta tem uma proposição implícita que não é verdadeira. As pessoas não sabem que ficarão viciadas; de fato, ninguém sabe que ninguém especificamente se tornará viciado em qualquer comportamento. Apenas uma porcentagem das pessoas que experimentam o cigarro torna-se dependente. E isso não acontece depois de uma tragada; é preciso que você repita o comportamento algumas vezes.

Portanto, fumar torna-se um prazer inocente. Ninguém dá um trago e morre de câncer, mas as pessoas tragam e sentem os efeitos relaxantes e euforizantes da nicotina. Isso reforça seu uso. O vício e a doença pulmonar obstrutiva crônica como "punição", no sentido da psicologia comportamental, ao uso do cigarro vêm após anos de uso crônico: ou seja, eles não são eficazes em inibir o ato de fumar na maioria das pessoas.

É claro, a antecipação desses desfechos desfavoráveis serve como contraestímulo ao fumo, mas para a maioria das pessoas essa é uma noção abstrata demais para frear a experimentação, principalmente diante dos estímulos muito concretos sobre os quais falaremos a seguir.

Cena do filme As neves do Kilimanjaro.

Afinal, por que as pessoas fumam, mesmo sabendo que faz mal?

Não existe uma razão única que leva todas as pessoas a experimentarem o cigarro, assim como não existe razão única para que usem pela segunda vez nem para que se tornem dependentes da nicotina.

Pessoas que convivem com fumantes (como filhos ou amigos próximos de fumantes) tendem a ver o ato de fumar com mais naturalidade do que aqueles que só conhecem o cigarro por meio do diz-que-diz que o tabaco mata, que vicia, que fede etc. Eles, portanto, estão mais propensos a experimentar o cigarro. [1]

Mas essa não é a única razão pela qual filhos de pais fumantes fumam mais. Também há o componente genético. Vários genes podem estar indiretamente ligados ao risco de alguém iniciar o tabagismo, especialmente aqueles relacionados a neurotransmissores, seus transportadores, as enzimas que os inativam etc. [2]

É claro, não existe um gene que determine o hábito de fumar. Vários genes em complexas interações entre si e com o ambiente determinam maior ou menor disposição a iniciar o uso de drogas, inclusive o tabaco. Essa disposição é determinada (inclusive, mas não apenas) por traços de personalidade como irritabilidade e impulsividade. [3]

A iniciação de um comportamento “perigoso” (como fumar tabaco) pode ser um sinal de impulsividade. Impulso (neste caso) é a ação sem reflexão prévia, sem racionalização acerca das consequências, fruto da incapacidade de adiar recompensa e de incapacidade de inibição motora. É a dificuldade de resistir a tentações.

A impulsividade de uma pessoa é determinada, inclusive, por fatores genéticos. Pessoas que fumam e usam outras drogas têm em geral mais genes que predispõem à impulsividade do que a média da população, e passam esses genes a seus filhos. [4]

Mas, é claro, a genética não é a única determinante de um fenótipo complexo como a impulsividade. Vários fatores ambientais predispõem o indivíduo a adotar ou não um comportamento impulsivo.

Por exemplo, o álcool. Frequentemente, na minha experiência pessoal, vejo pessoas começando a fumar em bares e festas, enquanto consomem álcool. Por quê? Em parte porque pessoas mais propensas a fumar são também mais propensas a beber; são os "buscadores de sensações", os sensation seekers. [5]

Mas também porque beber faz as pessoas fumarem mais. [6] Provavelmente porque o álcool inibe a função do córtex pré-frontal, que é o modulador dos impulsos animalescos do estriado ventral, que não se preocupa com nada além do prazer imediato (que a nicotina sabe proporcionar muito bem). Inibindo o inibidor dos impulsos imediatistas, o álcool faz com que a pessoa tenda a agir de forma mais impulsiva, adotando comportamentos “perigosos” como fumar, fazer sexo sem proteção e brigar. E talvez, ainda, porque neurobiologicamente o álcool faz com que a nicotina seja mais prazerosa do que o normal.

Outro fator ambiental que torna as pessoas mais impulsivas: estar em grupo. Uma das conclusões do famosíssimo experimento da prisão de Stanford foi exatamente esse: as pessoas em um grupo coeso (amigos de faculdade bebendo em uma roda numa festa, por exemplo) experimentam algum grau de perda da identidade pessoal, o que favorece a adoção de comportamentos impulsivos, agressivos e antissociais. [7]

Além disso, claro, se as pessoas ao seu redor fumam, você tende a fumar mais, por várias razões: o ato é encarado com mais naturalidade, o cigarro é mais disponível, você sente pressão social etc. Como já cobrimos aqui no blog, o contexto pode ser muito mais importante do que as inclinações pessoais.

Existem outros fatores ambientais muito sutis que podem facilitar que alguém experimente o cigarro. Por exemplo, se a pessoa lê por acaso em algum blog que fumar é prazeroso (porque realmente é!), isso pode aumentar um pouquinho a vontade dela de experimentar. Se, no mesmo dia, ela vai a uma festa, bebe, e um de seus amigos mais queridos lhe oferece um trago, ela tem boas chances de aceitar, mesmo que nunca tenha pensado em fumar antes.

Coisas muito bobas podem (teoricamente) aumentar as chances de um jovem iniciar o consumo de tabaco. Cansaço, hipoglicemia, melancolia, tudo isso aumenta as chances de se adotar atitudes impulsivas. Ainda, baixo poder socioeconômico está relacionado a maiores taxas de fumo. [3]

Além da impulsividade, há outras disposições pessoais que estatisticamente predizem maior chance de iniciar e continuar o uso do cigarro. Pessoas que, em testes de personalidade, pontuam mais no domínio do neuroticismo (tendência a experimentar sentimentos e pensamentos negativos) tendem a fumar mais do que aqueles que pontuam menos. Por outro lado, aqueles que pontuam mais no domínio conscienciosidade (tendência à disciplina, à retidão) tendem a fumar menos. [3, 8, 9]

Alguns distúrbios neuropsiquiátricos, como a esquizofrenia, têm um índice surpreendentemente alto de fumantes: cerca de 80% dos esquizofrênicos fumam. Pessoas que fumam na juventude têm maiores chances de desenvolver esquizofrenia (ainda que não exista necessariamente uma relação causal). Também há genes e fatores ambientais (como baixo poder econômico) que parecem predispor tanto ao fumo como também à esquizofrenia. [10, 11]

Diferentemente, pessoas com doença de Parkinson fumam menos do que a população geral. Aparentemente, há alguma relação entre certos traços de personalidade que predizem menores chances de fumar (menos "busca de sensações", menos agressividade) e a doença de Parkinson, o que talvez seja explicado por uma base neurobiológica comum. [3]

Portanto, de forma geral, as pessoas iniciam o uso de cigarro porque vários fatores, genéticos e ambientais, favorecem a adoção do impulso, em detrimento de uma escolha racional, deliberada, voltada a objetivos (“não vou fumar, pois assim não me tornarei dependente e não terei riscos aumentados de sofrer de câncer de pulmão daqui a 50 anos”). A vida é cheia de oportunidades para ceder a impulsos dos mais diversos, e fumar é apenas um deles.

Referências

1. FLAY, B. R. et al. Differential influence of parental smoking and friends' smoking on adolescent initiation and escalation and smoking. Journal of Health and Social Behavior, p. 248-265, 1994.

2. SABOL, S. Z. et al. A genetic association for cigarette smoking behavior. Health Psychology, v. 18, n. 1, p. 7, 1999.

3. GILBERT, D. G.; GILBERT, B. O. Personality, psychopathology, and nicotine response as mediators of the genetics of smoking. Behavior Genetics, v. 25, n. 2, p. 133-147, 1995.

4. VERDEJO-GARCÍA, A.; LAWRENCE, A. J.; CLARK, L. Impulsivity as a vulnerability marker for substance-use disorders: review of findings from high-risk research, problem gamblers and genetic association studies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, v. 32, n. 4, p. 777-810, 2008.

5. EVANS, A. H. et al. Relationship between impulsive sensation seeking traits, smoking, alcohol and caffeine intake, and Parkinson’s disease. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry, v. 77, n. 3, p. 317-321, 2006.

6. MINTZ, J. et al. Alcohol increases cigarette smoking: a laboratory demonstration. Addictive behaviors, v. 10, n. 3, p. 203-207, 1985.

7. HANEY, C.; BANKS, C.; ZIMBARDO, P. Interpersonal dynamics in a simulated prison. Stanford Univ Ca Dept Of Psychology, 1972.

8. VON AH, D. et al. Factors related to cigarette smoking initiation and use among college students. Tobacco induced diseases, v. 3, n. 1, p. 27, 2005.

9. TERRACCIANO, A.; COSTA JR, P. T. Smoking and the Five Factor Model of personality. Addiction, v. 99, n. 4, p. 472-481, 2004.

10. GAGE, S. H. et al. Investigating causality in associations between smoking initiation and schizophrenia using Mendelian randomization. Scientific reports, v. 7, p. 40653, 2017.

11. KENDLER, K. S. et al. Smoking and schizophrenia in population cohorts of Swedish women and men: a prospective co-relative control study. American Journal of Psychiatry, v. 172, n. 11, p. 1092-1100, 2015.


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