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PARTE 1

PARTE 1

Ó meus amigos, preparai-vos, preparai-vos nos ouvidos, mas também nas pernas, pois a historieta que tenho a contar hoje é um caso de grave dor e agonia, do tipo de dor e agonia que sucede o mais puro e divino prazer, e que por isso é a qualidade mais vil e demoníaca de dor e agonia.

Era um dia normal, meus queridos ouvintes, uma quinta-feira como esta, e eu já estava um pouquinhozinho cansado das aulas de mais que eu já havia tido durante todos aqueles intermináveis dias daquela semana, primeiro segunda, depois terça, depois quarta, e então eu já estava deveras cansado naquela quinta-feira de sol ameno, e por isso resolvi dormir até um pouco mais tarde e ir para minha belescola apenas um pouco mais tarde, sabeis, e assim acordei um pouco mais tarde e fui para minha belescola aprender um pouco de baboseiras sortidas.

Porém, adoráveis companheiros a quem me adresso, podeis imaginar a terrível indignação que tomou como sombra meu peito quando os veramente indolentes guarda-portões de minha belescola barraram meu ingresso com o inconcebível argumento de que eu não poderia entrar durante o horário de aula, já que estava atrasado, mas só apenas durante o intervalo interaulas, sem discussão, regras da casa.

Assim, bravos interlocutores, desolado, inconsolado e abatido, contentei-me em dar uma volta pelos quarteirões que rodeiam minha belescola, observando os carros passantes pelas largas avenidas, governados por mamães malhadas e siliconadas, estacionando nas escolas de línguas e deixando seus pequeninos herdeiritos para aprender a falar em línguas, blá blá blá, sabeis como é, e observando alguns velhos indo ao clube para um pouco de braçadas em águas mornas, e observando alguns seres humanos adentrando as panificadoras para seu desjejum daquele dia santo, tudo isso, veja bem, meus mais caros companheiros, apenas esperando o tic-tac ter a boa vontade de dar as horas do intervalo interaulas.

Enquanto eu caminhava e observava tudo e todos e esperava o tic-tac, eu dedicava metade de minha abundante atenção a uma florzinha de cana que eu picava meticulosamente para depois assentar em um belo tronco que mais pareceria um bastão gordo de homem das cavernas prestes a me acertar na cabeça bem fortão e fazer meus olhos ficaram cheios de sangue vermelhão.

Dessa forma, prezadíssimos ouvintes, bem sabeis que eu não estava mais tão desolado, nem tão inconsolado, nem tão abatido depois da pancada carburante e enfumarada do bastão, pois, como acertadamente imaginastes, minha cabeça naquele bel momento estava longe, longe, em longas elipses girando ao redor da lua.

Porém, amigos, tenham a sensibilidade de entender o terrível desassossego que novamente abater-se-ia sobre mim nessa manhã de torsdei cheia de emoções veementes.

Eu estava já voltando para minha belescola, como bom menino que tendes as ciências de que sou, quando parei em uma panificadora bem bonita para me olhar no espelho e checar se minha cabeça ainda estava grudada em meu corpinho, porque parecia que não, de forma alguma.

Quando vi meus reflexos superficiais no refletor, santa mãe de cristo, meus olhos pareciam Ams vista de cima, com o branco de minhas órbitas oculares sendo os quarteirões e os vasos transportadores em meus olhitos sendo os canais, mas canais de sangue, sangue vermelho como Marte, formando teias como formam os canais de Ams vista de cima.

Imaginai, parceiros de roda, qual não foi meu susto! O medo atingiu meu coração como uma bala, plou, e ele batia nas paredes de meu peito feito um, sei lá, um mamute galopante ou um elétron ou qualquer coisa que bate assim muito rapidamente e desorganizadamente, tum tum tum tum tum tum, parecendo que ia me jogar de um lado para outro de tão rápido que batia e eu pensei comigo que aquela cana caninha era forte demais ou que talvez meus bastão tivesse ficado gordo demais ou comprido demais, algo assim, algo que eu não poderia dizer com convicção, queridos interlocutores, mas algo ali estava muito estranho, muito estranho, a coisa estava para feder.

Pus-me com industriosidade a pensar bem rápido em como contornar aquele incidente, pois eu não poderia chegar à belescola naquele estado horrendo, e a velocidade de minhas ondas neurais ultrapassava a velocidade de meu coração, tum tum tum tum.

Primeiro eu pensei em passar pelos guarda-portões de olhos fechados, de forma que aqueles mesquinhos não fossem capazes de ver meus olhitos vermelhitos, contudo essa solução vinha transbordando de efeitos colaterais, já que, por exemplo, apesar de muito bem familiarizado com a arquitetura devassada de minha belescola, eu não era familiarizado com o andar sem ver, e provavelmente eu não conseguiria marchar decentemente de olhos fechados e cabeça na lua.

Pensei muito bem em passar em uma loja de drogas e comprar um daqueles plin plin que imediatamente resolveria meu problema de vermelheza nos olhos como que por milagre do senhor das esferas, mas o desastre, caros interlocutores, é que a única loja de drogas que eu conhecia não ficava tão perto de belescola e o tic-tac já estava chegando na hora do intervalo interaulas mais rápido que meu coração, tum tum tum tum, e assim eu não poderia chegar à loja e voltar a tempo.

Saí da panificadora e rumei à belescola, meus queridos amigos, ainda tentando pensar, porém, cada vez mais desesperado, e eu vos direi, meus queridos amigos, eu achei que estava ficando louco.

Nesse bel momento, prezados interlocutores, como que um raio de luz do céu comandado pelo próprio todo-poderoso atingiu minha cabeça com a força de um bastão de cana caninha e eu vi as mamães malhadas e siliconadas deixando os piazinhos nas escolas de línguas, blá blá blá, e vosso amigo locutor realisou que todas elas quase sem exceção usavam lunetas nos olhos que pareciam borboletas bruxas pretas que eram muito da moda de Parrí ou Boston e eu pensei lá comigo que aquelas lunetitas ficariam bem melhores em meus olhinhos vermelhos vermelhões do que naquelas caras artificialmente não rugosas.

Assim, honradíssimos colegas, procedi com a estratégia de me esgueirar até um daqueles carros grandes e tomar uma daquelas lunetitas horrorosas de alguma mamãe malhada e siliconada, mas todos os carros quase sem exceção eram refrigerados por dentro e, portanto, tinham os vidros fechados, de forma que seria muito difícil e trabalhoso quebrar uma daquelas janelas com a mamãe ainda lá dentro, pois ela se assustaria e então seria deveras dificultoso arrancar as lunetitas de seus olhitos velhos e feios.

Tive então que pensar em outra forma de conseguir pôr as mãos naquelas lunetitas e lembrei que em minha mochila tinha uns pacotes de masca masca que eu deixava lá para que meus pais folgados não ficassem cheirando meus ares quando eu chegava em casa durante a alvorada com a cabeça na lua de cana caninha e licores variados, e mui atinadamente decidi que fingiria vendê-los no farol perto da escola de línguas, blá blá blá, e então eu os ofereceria às mamães malhadas e gostosas dizendo que serviriam para ajudar a arrecadar frentes e fundos para um projeto beneficente da belescola e elas se enterneceriam com minhas mui boas intenções e confiariam em meu belo rosto o bastante para abrir suas janelitas e permitir que eu pegasse suas lunetitas emprestadas.

E foi assim que fiz: peguei uns cinco ou seis ou talvez sete, não sei ao certo, pacotes de masca masca de menta, pêssego e amendoim e passei por entre os carros parados no sinal gritando "Masca masca! Para manter seus dentes polidos e sua língua cheirosa! Masca masca de vários aromas!" e dirigi-me a um carro grande de uma mamãe malhada e siliconada vestindo lunetitas que deixava seu herdeirito na escola de línguas, blá blá blá, e ofereci-lhe de longe pelo vrido dianteiro: "Masca masca! Para ajudar as crianças órfãs da cidade!" e dei-lhe um sorriso bem bonitão e logo vi que ela estava mexendo em sua bolsa, procurando uns trocados e me aproximei dela:

— Bom dia, minha cara senhora! Que bela quinta-feira, não é mesmo? Uma bela quinta-feira para manter os dentes polidos e a língua cheirosa enquanto ajuda as crianças órfãs da cidade, não concorda? Hoje temos menta, pêssego e amendoim, os de creme holandês acabaram de acabar, sabe?

E ela abriu o vrido mui simpaticamente e me sorriu mui simpaticamente e disse que iria querer um de menta e que era uma pena não haver mais de creme holandês, e eu concordei, pois é o meu favorito, por isso acabou tudo, e ela disse que era mui bonito o que eu estava fazendo e que apoiava bastante o projeto de minha belescola e que deveria haver mais jovens educados como eu e que, aliás, eu era veramente bonito até, e que ela justamente decidira que levaria dois, um de menta e um de amendoim e me ofereceu uns contos em notas pequenas.

Ou seja, caros interlocutores, tudo correu melhor do que eu pensei, pois além das lunetitas, como podeis prever, eu conseguiria também uns trocos para comprar papel de bola, pois o meu estava acabando.

Peguei os contos e fingi que procurava uns trocos nos bolsos bundais de minha calça, o que fez a mamãe malhada e siliconada se distrair e me deu a oportunidade de meter minhas belas mãos em sua cara artificialmente não enrugada e tomar suas lunetitas que me eram tão preciosas naquele momento, e assim o fiz e lhe tomei as lunetitas e saí andando rápido para o rumo de minha belescola, pois não havia necessidade de correr e suar meu belo corpo naquele sol horrendo de quinta-feira de manhã, pois a senhora havia ficado muda de susto, sem reação, igual uma bonequinha de luxo, e apenas quando eu já virava a esquina comecei a ouvir seus gritos histéricos e sem classe, chamando-me de nomes que eu não ousaria repetir a vós, meus ouvintes, pois eram nomes baixos e feios, indignos de vossos ouvidos como eram indignos dos meus, e tudo que desejei naquele momento foi enfiar minha mão na boca suja daquela senhora sem educação e arrancar-lhe a língua para que ela aprendesse a não dizer coisas feias em tão altos brados no meio da rua.

E assim, caros amigos, finalmente eu estava lunetizado, com os olhos protegidos dos olhos inquisidores dos guarda-portões, e depois de muito desespero eu estava finalmente calmo, e pude finalmente curtir o espírito alto que aquela cana me deu e que ainda duraria até quase o final das aulas matutinas, e assim prossegui mui felizmente para minha belescola.

FIM DA PARTE 1


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