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Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa

Eu gosto muito, muito de música. Ouvir letras bem escritas é um prazer diário, e parece que a vida foi feita para isso.

Porém, uma das maiores cantoras do Brasil cantou que "qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa".

Agora mesmo, estava escutando "Eu e você sempre", com Jorge Aragão, no YouTube e li o comentário de uma mulher dizendo que aquela música lembrava o filho dela, morto em um acidente de motocicleta.

De repente, a música ficou sem graça.

***

Qualquer texto é menor do que a dor de qualquer mãe que perdeu o filho. Imaginar a dor que aquela canção, tão gostosa para mim, traz àquela mãe é indizível. E é horrível.

No HC, os politraumatizados que chegam são inicialmente responsabilidade da cirurgia geral, onde estou fazendo estágio. O politraumatizado típico é o homem que bateu de moto, assim como o filho daquela mulher. Mas há, claro, mulheres e crianças, vítimas de balas, facas, quedas etc.

Nos últimos plantões que dei, duas pessoas morreram, lá na sala de emergência mesmo, pouco depois de chegarem ao hospital (chegaram, na verdade, sem pulso, foram reanimados, mas no fim não resistiram). Homens. Um motorista de carro e um motoqueiro.

É muito louco pensar nisso. Não vou falar aqui sobre a volatilidade da vida, nossa fragilidade humana e a imprevisibilidade com que a morte chega, pois são assuntos já muito mais bem explorados por outras pessoas do que eu conseguiria fazer. Mas é muito louco pensar naquelas pessoas que saíram de casa para "trabalhar, estudar, passear, roubar, sei lá" e não voltaram.

E também é muito louco pensar nas pessoas queridas que ficam e em como as circunstâncias mudam suas vidas. A data que era uma qualquer agora é a data da morte inesperada; a rua que era cotidiana agora é a rua da morte prematura; o modelo de carro que era atípico agora é o modelo de carro envolvido na morte violenta.

“Vivendo e aprendendo a viver com os contrastes da vida”.

A música que era de celebração agora é a música da saudade irreparável.

***

“O meu peito percebeu que o mar é uma gota, comparado ao pranto meu”.

Eu amo música, exatamente porque ela me ajuda a me conectar com aspectos existencialistas que me são fundamentais. Mas sei que qualquer filosofia é menor do que a vida de qualquer pessoa.

Nenhuma canção de Cazuza é maior do que sua luta privada contra uma das moléstias mais tristes que a humanidade já conheceu.

Nenhuma canção de Chorão é maior do que o desespero que tomou aquele apartamento em Pinheiros.

Nenhuma canção de Ventania é mais poderosa do que sua bad trip de flor de trombeta.

E nenhuma epifania motivada por nenhuma música será maior do que a dor da mãe que ouve Jorge Aragão e lembra a morte de seu filho.

Não sou religioso, mas que deus a conforte.


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